sábado, 28 de junho de 2008

Análises etnográficas das imagens sobre a realidade do aluno no enfrentamento das dificuldades e desigualdades na sala de aula
Carmen Lúcia Guimarães de Mattos1
Paula Almeida de Castro2

Resumo
O artigo apresenta criticamente as imagens construídas por alunos e alunas sobre a realidade escolar e dá voz a esses alunos de Ensino Fundamental. A realidade que analisamos reflete o imaginário coletivo que orienta as práticas pedagógicas de sala de aula As análises produzidas se pautam pela abordagem etnográfica crítica de sala de aula. Apresentamos as seguintes características da sala de aula: 1) a geografia da disciplina dos corpos; 2) a assimetria de poder; 3) a unilateralidade do discurso; 4) a imposição curricular; 5) a hierarquia do saber; e 6) o escrutínio − substituição da punição física pela exposição física. São realizadas análises de imagens como representação da realidade buscando o entendimento do movimento interno e dialético de construção que engendram essas imagens. Desenhos e narrativas ilustram e representam o fracasso escolar e a exclusão educacional. Dois eixos de análise são explorados: a realidade como dificuldades a serem superadas e como desigualdades sociais. O texto contribui para o debate sobre as práticas escolares que levam a inclusão ou exclusão de alunos e alunas.
Palavras-chaves: fracasso escolar, inclusão educacional, realidade, etnografia


A pesquisa etnográfica nos permite, a partir do processo indutivo de análise, explorar novos temas que tangenciam o objeto de estudo de modo a re-descobrir caminhos, redefinir hipóteses e construir interpretações (Mattos 2001). As pesquisas sobre o fracasso escolar que desenvolvemos nos últimos anos (Mattos 1992, 1996, 1998, 2000 e 2002) nos direcionaram para as questões − O que é a realidade do aluno? Qual é a “realidade” de que falam currículos, escolas e professoras? Este tema ecoa por todos os cantos, habita os artigos sobre currículos, orienta os artigos acadêmicos e os jornais sobre a escola, está na voz de professoras, diretores, coordenadores, governantes, políticos e é parte do debate nas salas de aula de formação de professores e professoras pelo menos há três décadas. Nos anos 70, estudiosos da escola críticos ao tecnicismo e afinados com a as teorias críticas à escola anunciavam que a escola precisava atender a realidade de seus alunos e alunas (Coles 1967). A partir daí, a busca pelo entendimento sobre o que é realidade do aluno e da aluna não se esgotou.
Atender a realidade do aluno − de que realidade falamos?
Para estudar a realidade do aluno e da aluna, se faz necessário um olhar minucioso sobre a escola e em particularmente, sobre a sala de aula, que serve como pano de fundo para essa realidade, pois ela é o espaço físico eleito pela sociedade moderna para o exercício da comunicação e disseminação de sentido e valores sócio-culturais (Berger & Luckman 2004).
De acordo com as análises de Frederick Erickson
3 e pelas nossas próprias visões da sala de aula destacamos as seguintes características: 1) geografia de disciplina dos corpos; 2) assimetria de poder; 3) unilateralidade do discurso; 4) imposição curricular; 5) hierarquização do saber; e 6) escrutínio, pois essas, dentre outras, são representações impressas nas imagens mentais que fazemos da sala de aula e podem ser tomadas como ponto de partida para as análises que descreveremos.
Podemos afirmar que, de uma maneira ou outra, todos nós já vivemos uma situação, um evento, uma cena em sala de aula. Observadas algumas diferenças geográficas e regionais, as salas de aula no último século não mudaram muito em aparência, são muito similares, especialmente tomando por referência as escolas públicas. Portanto, conhecemos suas características físicas e podemos sem muito esforço imaginar uma cena de sala de aula. Nesse retrato vemos uma construção retangular, com janelas em pelo menos uma das paredes, um quadro-negro na frente e uma porta ao lado, também na frente, na parede oposta à da janela. Nessa configuração não raro as carteiras escolares estão dispostas em frente ao quadro-negro e enfileiradas e posicionadas frente ao professor e à professora, e de costas para o colega uns atrás dos outros. Essa imagem da sala de aula retrata a geografia da disciplina dos corpos, tanto pela arquitetura local como pela imposição de papéis sociais, contendo a espontaneidade de movimentos e prevenindo a indisciplina de alunos .

(...)

Elegemos dois eixos para análise. O primeiro se orienta para uma interpretação naturalística de que “a realidade” de alunos e alunas é aquela que se opõe a suas “ilusões”, isto é, a realidade vivida é diferente da sonhada, o real se opõe ao imaginário. O segundo se aproxima mais de uma visão ingênua e concreta nas mentes dos jovens estudados, eles vêm realidade como “vida vivida”, que passa no cronômetro dos afazeres cotidianos. O “fazer” diário que envolve as rotinas: escola, família , brincadeira , estudo, trabalho, dentre outros.
Nas interpretações selecionadas, a cultura expressa aparece colada ao imaginário coletivo de alunos e alunas, às suas próprias subjetividades, especialmente nas representações de professores e professoras, pais e mães. Eles vêm realidade como “uma dificuldade” a ser superada e como um contexto de vivências de desigualdades sociais − uma batalha é travada no interior dos seus mundos sociais e individuais de vivências e de pertencimentos identitários.
As duas formas de interpretação que elegemos não esgotam as inúmeras explicações expressas pelos jovens e participantes da pesquisa, mas aparecem de forma significativa como a expressão maior do entendimento que esses jovens têm sobre o seu universo e sobre suas realidades.
Os dados analisados são originários da pesquisa sobre o fracasso escolar
4 e foram re-visitados e re-examinados na pesquisa Imagens da Exclusão (2002-2005). As imagens deles derivadas nos auxiliam no desvelamento da realidade de alunos, representadas por eles próprios. Durante a pesquisa de campo, a professora afirmava que as atividades propostas tinham que atender à realidade de seus alunos de acordo com os preceitos legais e às demandas pedagógicas exigidas, adequando esses conteúdos e tarefas à realidade dos alunos, especialmente daqueles em desvantagem social. No caso, a escola situada na zona sul do Rio de Janeiro, atende às crianças moradoras da Rocinha. Procuramos sem sucesso entender de que realidade a professora falava − favela, dificuldades cognitivas e sociais dos alunos, escola, currículo. Dentre as nossas hipóteses, concluímos que aqueles alunos talvez pudessem nos oferecer pistas sobre o significado evocado pela professora.
Por isso solicitamos aos alunos, através da professora, uma redação sobre o tema − Faça uma redação sobre o que é realidade para você − e os resultados são uma seleção dessas redações. Através da indução analítica – um processo de hipóteses e resoluções progressivas de problemas − e de comparação recursiva – rever a evidência tendo em mente a asserção e rever a asserção tendo em mente a evidência, re-analisamos os dados à luz do objeto − imagens da exclusão − e chegamos a algumas considerações.
Essas imagens desenhadas e narradas descrevem seus sentimentos e suas preocupações com a vida, com a escola e com a sociedade. O contexto da escola pública denuncia a preocupação com as notas revelando o valor da nota como um passaporte para um futuro de sucesso ou para a exclusão (Mattos & Castro 2004). Os desenhos representam a realidade como dificuldades a serem superadas e como desigualdades sociais. A maior dificuldade encontrada é a aprovação e a maior desigualdade é a da classe de pertencimento social.
Realidade como dificuldades a serem superadas
A figura 1 representa a intolerância à diferença, a distância entre a professora e seus alunos e a pouca possibilidade de participação ativa na sala de aula. A assimetria de poder entre a professora e os alunos é uma das evidências mais concretas sobre a realidade das salas de aula retratadas tanto no desenho como no texto escrito. A professora sentada em sua mesa enorme grita para que os alunos fiquem “quietos”. Os alunos, a sua frente, ficam sentados em minúsculas carteiras e perfilados lado a lado, pensam a cena através de uma expressão − “Ela dano esporo” − significando que certamente esta é uma atitude freqüente da professora − a intolerância ao barulho, à indisciplina e ao movimento dos corpos. O menino de 13 anos, ainda na 4ª série, se percebe imóvel, silenciado, distanciado da professora e próximo do colega.

Figura 1: Ela dando esporo

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